Estava eu voltando para casa outro dia, daqueles dias que você anda mais pensativa que o habitual, que a vida tem menos sentido que o costumeiro. Dentre tantas travessias, parei para atravessar a rua.
Duas senhoras, idade de fato avançada, paradas com a pressa das pessoas, a velocidade dos carros, a modernidade que não permite olharmos para nada que não seja máquina, tentavam também, creio eu que sem sucesso já há alguns minutos. Elas ali, perdidas na temporalidade de outra época, enclausuradas pela condição da tecnologia que o corpo e mente já não acompanham.
Havia também uma família, nuclear demais para os moldes da exclusão: pai, mãe e filho, maltrapilhos, maltrajados, daqueles que a maioria dos que dirigiam rapidamente e impediam a passagem, ou até mesmo aquelas senhoras desviariam se na mesma calçada estivessem. Considerados sem dignidade, sem educação, enfim, incluídos apenas na falta, nas vulgarmente nomeadas carências; carências criadas pela normatização, pela moral que determina como, onde e por quê.
Pois, aquele homem a quem tanto falta, num ímpeto de indignação e cavalheirismo nunca antes visto por mim, foi para o meio da rua e parou os carros com seu corpo tão sem valor produtivo, e gentilmente convidou as senhoras a atravessar, segurando ali com sua mão, que não é de obra, provavelmente, pela sua condição de provável desemprego formal.
Eu ali com meu corpo inserido, com meus trajes modernos e da moda, com meu discurso acadêmico não fui capaz de fazer isso, aliás, nunca nem me ocorreu tal ato.
Enquanto eu faria um memorando, uma denúncia reivindicando condições ou um semáforo, ele transformou a indignação em ato e se mostrou mais cidadão que qualquer um de nós.
Aquele homem com sua pouca instrução formal tem em seu corpo a ética inscrita, porque ele a vive. A carência é de quem?
E ao chegar do outro lado da calçada, a vida voltou a ter sentido e os olhos brilharam, com algumas lágrimas que tentaram também me atravessar, mas, admito, não deixei... há excessos demais em mim e na minha rotina para que elas pudessem cair.
2 comentários:
Esse cidadão passa despercebido, mas faz muita diferença.
do nada encontrei seu blog, lendo as mensagens da lele..e me surpreendi..como voce chegou na hora certa...como voce parece de mentira com seus escritos..parece que um outro mundo nesse momento foi descoberto...nao sabia que alguem poderia ir tao fundo num coracao!!!parabens!!!!
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